A cozinha do imigrante, que veio para o Brasil, não reflete fielmente a de seu país de origem. Quase sempre é uma adaptação de suas receitas tradicionais aos ingredientes encontrados aqui. Nosso país sempre foi muito fechado às importações, até a década de 1980 importações de alimentos e bebidas eram limitadas e caras. Como passei minha juventude no Bairro do Bixiga, tradicional reduto italiano da cidade de São Paulo, onde trabalhava na Rotisseria de minha família, vivenciei essa tradicional cozinha imigrante, que até poderia chamar de Cozinha do Bixiga.
Aprendi a fazer os antepastos preferidos pela Colônia com minhas próprias freguesas. Meu balcão era um ponto de troca de receitas, creio que não havia um papo sequer que não terminasse em uma ou duas receitas. Claro, pois quem ouvia uma não poderia ficar por baixo, passava outra receita, isso quando não apresentava sua versão daquela ouvida.
Para o povo do Bixiga receita era ponto de honra, as famílias preservavam as suas como a tesouros, eram parte imaterial do enxoval das Bambinas. Presenciei, inúmeras vezes, acirrados bate-bocas sobre o tema, um destes começou assim:
- Mas, Dona Giulia, essa sua receita não é a tradicional, minha Nona me ensinou de outra maneira. A dela, sim, era a verdadeira, trouxe da Itália.
Isso foi encarado pela Dona Giulia como uma grande afronta. Já imaginou? Uma italiana falsificada querendo ensinar a ela uma receita mais tradicional que a aprendida com sua mãe. Esta, sim, era a receita verdadeira. Confidênciou-me, depois, indgnada.
Esse assunto de “receita verdadeira” era delicado. Terminou, muitas vezes, em senhoras bufando, murmurando palavrões em dialeto calabrês e sem se falar por meses.
Lembro-me de outro episódio envolvendo a receita de Sardela, a que fazia aprendi com Dona Isabel, freguesa versada em assuntos de forno e fogão. Nosso vizinho, Sr. Rosito, nascido na Calábria, adorava beliscar dessa Sardela, que eu sempre mantinha como amostra no balcão. Passava generosas porções dela em fatias de pão italiano, também por mim oferecidas, e depois de satisfeito quase sempre repetia, em português macarrônico:
- Mio filho, é buona sua Sardela, ma questa riceta nunca vai poder ser iguale à vera receita calabresa. Porque aqui nom existe o peixinho com que fazem ela na Itália. Ma filho, também lá se coloca mais pimenta, falta pimenta na sua Sardela.
Ao menos mil vezes ouvi a explicação de que Sardela era um tipo de alevino, bem miúdo, pescado na Calábria e conservado em sal. Aqui, na falta dele, usamos, muito dignamente, a sardinha anchovada, tipo Aliche.
Quanto à pimenta, eu sempre explicava que, como vendia para terceiros, não podia fazer algo muito apimentado, nem todo mundo aprecia, tampouco é obrigado a comer pimenta demais. Explicação sempre dada em vão, no dia seguinte ele reclamava novamente.
Cansei disso, tive o capricho de fazer uma sardela especial, à moda Rocco Rosito. Ao invés da comportada pimenta dedo-de-moça que usava coloquei uma porção exagerada de malagueta. Separei num potinho e deixei debaixo do balcão, à espera de meu freguês reclamante. Ao final da tarde, Rosito entrou na loja, como sempre fazia: boina na cabeça, batendo com sua bengala nos potes com produtos, beliscando as azeitonas e já procurando um pãozinho para se servir de minha sardela do balcão. Adiantei-me e disse:
- Sr. Rosito, fiz uma sardela com mais pimenta, especialmente para o amigo.
Coloquei o potinho no balcão e ele se serviu generosamente, como sempre. Enfiou a fatia na boca, mas quando mordeu seu rosto se transformou, os olhos se esbugalharam, cerrou os lábios e murmurou por entre eles:
- Agora tá bom.....vô levá....
Minha consciência pesou e lhe passei um providencial copo de vinho de prova, que ele sorveu apressadamente. Tirou a boina, enxugou o suor da testa, mas não deu o braço à torcer, nem comentou que estava muito apimentada.
Embrulhei a sardela, ele pagou, agradeci, ele foi saindo e, já próximo à porta, como se lembrasse de algo, de um estalo virou-se e disse.
- De pimenta tá boa, má ainda nom é a “receita verdadeira”.
- Ciao, Francesco.
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| Homer, após provar a Sardela Rocco Rosito |

Eu gostaria muito, muito de aprender sua receita de sardela. Você pode enviar para meu e-mail: danutaferreira@gmail.com
ResponderExcluirOlá, Danuta.
ResponderExcluirDurante essa semana vou publicar essa receita por aqui.
Ainda não a publiquei porque estou fazendo uma nova experiência com ela, tentando reduzir um pouco o tempo de cozimento.
Creio que valerá a pena esperarmos um pouquinho.
Muito obrigado.
Francisco Pinto
Obrigada pela receita. Maravilhosa! Aguardo receitas de novos patês. Um que tenho muita vontade de aprender é o Alichella.
ResponderExcluirSó fiquei com uma dúvida: é erva doce ou semente de erva doce?
ResponderExcluirOi, Danuta;
ResponderExcluirÉ semente de erva doce.
Em breve publico a Alicela para você, essa é facílima.
Muito obrigado.
Oba! Já publicou a receita de alicela?
ResponderExcluirVoce e' muito legal!
ResponderExcluirOlá, Ana. Muito obrigado, querida. Vi que você também dá receitas em seu Blog. Esse meu Blog aqui está meio desativado, pois passei a escrever para a Jovem Pan On Line. Continuo no mesmo estilo daqui, mas agora de forma profissional, se quiser visitar:
Excluirhttp://blogs.jovempan.uol.com.br/cozinhandocomvinho/
É um prazer poder te conhecer. Um abraço.
Tentei achar o vídeo da receita e não consegui. Ainda tem ele?
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